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Contos-->Caixa de Correio -- 29/02/2000 - 12:44 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eram mesmo três moleques. Viviam, com a roupa do corpo, de perambulação pelas ruas da cidade, sem pouco se importarem com a preciosa vidinha. E lá estavam eles, caminhando em direção à parada de ônibus, quando um daqueles carrões enormes se aproximava. Subiram os três, tentando ajeitar-se na situação constrangedora.
- É um real. - Pediu o caixa do ônibus, sem muito observar nos três moleques. Vítor, o maior deles, era uma espécie de líder. Esperto, inteligente, tinha tudo pra dar certo na vida. Menos dinheiro. E Vítor olhou, revirou os bolsos, olhou para o Maguila, o menor deles, e depois olhou para o Carlinho. Nada.
- Peraí, moço, disse ele. Revirou os bolsos e a sacolinha, que carregava, mais uma vez. Mais nada.
- Carlinho, eu não deixei com você?.
- Não, respondeu o outro moleque.
- Pô, Vitinho, isso é hora de esquecer nosso dinheiro?.
- Cara, eu me lembro bem de ter colocado aqui... ahhhhh... droga.... tava aqui. O cobrador já olhava de cara feia. Já sabia o que iria acontecer. Já tinha acontecido antes. Sempre acontecia. O moleque havia esquecido o dinheiro.
- Cara, eu me lembro. Eu pus no bolso... - Disse ele, depois fazendo uma cara ao mesmo tempo esclarecedora e decepcionada:
- Ahhh...droga... eu pus no bolso da bermuda... mas eu troquei ela antes de vir pra cá... idiotaidiotaidiota...
- Pô, Vitinho. Que vacilo! E agora? - Reclamou o Maguila.
- Moço, desculpa a gente, mas é que... você viu! Eu tive de trocar a bermuda.
A gente desce na próxima. - Disse Vítor, decidido. Era uma ator. O cobrador concordou, mexendo a cabeça. E era sempre assim.
- Ahahahaha.... - Começaram, quando desceram.
- Você viu...hahaha... a cara do Vítor? Essa foi uma das melhores.
E viviam desse tipo de transporte, para depois sair vagabundeando pela cidade. Na verdade, não havia muito que poderiam fazer. Carlinho era o mais velho, e mais marginal. Não sabia fazer muita coisa, e o “um ano” a mais em cima de Vítor não representava nada entre eles. Eram amigos e só. Uma amizade de rua, sem perigo de traição, que gerava um respeito mútuo entre eles. Carlinho roubava, “já matei um sujeito”, dizia ele, mas isso nada representava. Eram três moleques diferentes. Vítor deveria ter uns dezesseis, mas nem se lembrava. Nem sempre seus planos funcionavam como o esperado. A aparência não ajudava nem um pouco. Afinal, quantas vezes não haviam sido enxotados de dentro do ônibus por um ou outro motorista mais desconfiado? Eles sabiam o horário e o motorista de todos os que passavam por ali e de mais quatro outras paradas distantes, mas nem sempre funcionava. Era a vida dura de vagabundo e eles estavam acostumados com esse tipo de coisa. Mas a vontade de seguir esse caminho em pouco tempo era muito, muito maior. Maior, porque eles tinham um motivo maior. Chegar, como sempre faziam, à caixa de correio.
E era realmente estratégico. Eles combinavam, pesquisavam os motoristas, o horário dos ônibus, das cinco paradas, e tentavam, a cada dia, ir por um caminho diferente, com um motorista diferente, chegar à rua da caixa de correio. Um trabalho de primeira, arquitético, pra nenhum planejador botar defeito. E geralmente dava certo. Iam e vinham, para depois descerem na rua São Gonçalo, onde se localizava a dita cuja.
A “diversão” era uma caixa de correio arrombada, talvez por algum vândalo ou mesmo por algum vagabundo como eles (que são também vândalos, afinal). A tampa, que se abria por baixo, estava sempre aberta, porque o trinco estava quebrado. Era muito fácil abri-la e depois fechá-la, fazendo parecer que não estava quebrada. Então, era um segredo apenas deles; e dos carteiros, que definitivamente não davam a mínima. Abriam e fechavam a caixa amarela da mesma forma que eles.
E então, quase todos os dias, estavam lá eles, abrindo a caixa violada e recuperando, para sua própria diversão, as cartas de centenas de pessoas. E eles adoravam. A maioria era composta apenas de cartões-resposta, taxas de bancos, e cartas de concursos e sorteios. Era difícil sair algo muito mais interessante que isso. Porém, eles tinham um fascínio por cartas de verdade. Gostavam de pegar, arrebentar o selo, e ler os segredos mais ocultos dos outros, seja entre amigos, seja entre famílias. Gostavam de saber tudo, e riam disso. Riam das mágoas e da felicidade dos outros. Foi isso que os uniu, certa vez em que um grande grupo de vagabundos resolveu se divertir dessa forma. A idéia acabou não vingando, porque a grande maioria dos vagabundos não sabe ler. Porém, sobre aqueles três pequenos moleques, essa brincadeira de mal gosto era um fascínio. Uma arte. A arte de ler histórias. “São os nossos livros”, dizia o Vítor, com uma ponta de orgulho. A caixa de correio daquela ocasião acabou sendo arrumada, mas eles decidiram procurar outra. E revistaram quase todas as caixas de correio da cidade, incessantemente, até encontrar aquela pérola da São Gonçalo, e mudar completamente seu modo de viver.
Vítor era o único que sabia ler. Todos foram criados na rua, e realmente nunca tiveram espaço para este tipo de educação. Porém, Vítor tinha algo de diferente. Ele era mais inteligente que eles. Aprendeu a ler sozinho, observando as pessoas falarem e olhando as placas na rua.
- É fácil. Muito fácil. Está vendo aquela placa? Está escrito “Coca-cola”. E naquela outra, está escrito “Café”, certo? Bem, as duas têm o começo igual, está vendo? A letra “c”. E as duas fazem um som igual quando faladas, está vendo? COca-COla e CAfé.
Ele tentava explicar melhor, mas os outros dois não entendiam. De jeito nenhum. Eram estúpidos, de verdade. Porém, todos tinham aquela obsessão por entender o que as pessoas diziam nas cartas. Não que eles se importassem com elas, muito pelo contrário, mas eles gostavam se saber o que diziam. Gostavam de revelar segredos, mesmo que não fosse a ninguém. Na maioria das vezes ficavam com as cartas para eles. Não se importavam com a horrível violação que faziam. Outras, porém, por algum motivo qualquer, devolviam para a caixa de correio, abertas mesmo, para o carteiro poder levar ao destinatário. Talvez fosse uma saída; um refúgio para um mundo externo; alheio, às vezes melhor que o deles. Às vezes não. Mesmo assim, gostavam de compartilhar o real. Eram poetas, mães, escritores e amantes. Apaixonados, agressores e maníacos. Era desse mundo que gostavam. Mas não com eles. Com os outros.
Então, com uma sede pecaminosa, abriram a primeira carta, para Vítor poder lê-la, em voz alta:

“Para meu ‘tudo’,

Você deve saber qual é, mais uma vez, o assunto desta carta. Eu já te enviei outras, e você conhece minha obsessão por você. Sabe que eu não apenas te amo, mas te venero, te idolatro, te cheiro em todos os cheiros, e jamais, mas jamais mesmo, te tiro da cabeça. Estou ficando louco, por esta fuga. Estou empilhando em minha memória sofrida amontoados de pensamentos a respeito de você. E minha mente está ficando saturada. Não consigo mais viver sem olhar para você. Sabe, mas sabe mesmo que eu empilhei quatrocentas fotocópias daquela sua foto no meu quatro; mais quatrocentas na parede do meu banheiro, e outras na sala. Eu expulsei minha esposa de casa. Eu vivo por ti.
Esta é a quinta carta que te envio esta semana e você não me responde. Por favor, eu lhe imploro: sacie minha sede. Nem que seja para escrever “eu te odeio”. Preciso sentir o perfume de suas mãos em algum papel, preciso ler sua letra maravilhosa. Preciso te ver. Já enviei tudo que podia; flores, bombons, tudo. Quer que eu despeje um helicóptero de pétalas sobre sua casa? Eu consigo o dinheiro. Nem que tenha de matar para isso. Mas me responda, pelo amor de Deus. Estou sofrendo muito. Não sabe como. Já fui até sua casa. Vou aí todos os dias, mas nunca te encontro. Eu sei que se esconde, mas alivie meu sofrimento. Eu preciso olhar para seu rosto divino e me sentir bem novamente. Virei dependente de você. Desde aquela noite. Saiba que eu jamais desistirei, está lendo isso? Vou atrás de você caso se mude. Vou atrás de você caso você vá a qualquer lugar. Posso adotar pseudônimos, posso contratar detetives, mas eu te encontro.
Sabe, às vezes eu sou realmente rude, mas é que... é impossível descrever em palavras minha paixão por você. Por seu corpo e por sua alma. Quero sugá-los, me aproveitar de cada pedaço de ambos. Quero apenas você, nada mais. E preciso descarregar nessas minhas malditas palavras todo esse sofrimento. Minha vida se tornou um mar de prantos desde que não mais te vi. Preciso de um momento de lucidez. Um momento de claridade, para que eu possa reorganizar minha mente, e minha vida. E sem você isso não é possível. Se você quer dinheiro, posso arranjar. Eu roubo, se for preciso. Apenas fique comigo. Não precisa me amar, nem gostar de mim. Basta saciar minha sede. Me deixar viver como um homem normal novamente. Não quero ser correspondido. Quero apenas você, meu fantoche das estrelas, para que eu posso viver novamente. Esse
é um dos últimos apelos. Atenda. Eu te amo. Eu preciso de você mais do que das drogas que passei a usar para tirar você da minha cabeça. Estou mais dependente do que nunca. SEJA a minha droga, meu amor.

Omar Paricelli, seu doente apaixonado”

- Ele de novo. O cara está cada vez mais maluco. - Disse o Carlinho. Esse eles conheciam. Era um sujeito louco. Tinha uma paixão demente por uma moça que morava longe. Já a tinham visto, certa vez, por curiosidade. Uma moça linda, que tinha um namorado que a prezava muito. Souberam, através das cartas, todas as histórias desse sujeito. Certa vez o homem passou a noite com a moça, há uns quatro anos. Eles não se empolgavam mais com as cartas dele. Tinha uma tendência suicida, mas faltava coragem. Às vezes eles deixavam as cartas dele chegarem, mas quase sempre ficavam com elas, sem deixar a moça lê-las. Gostavam de ver o pobre sofrer.
- A carta tá borrada. Ele deve ter chorado quando escreveu isso. Vamos pôr de volta?
- Nada. Vamos guardar. Não quero ver esse cara empurrinhando a vida da moça não. Abre mais uma aí, Maguila. - Respondeu Carlinho, pedindo depois ao pequeno que pegasse um bolo de cartas.
- Sem remetente. Deve ser alguma coisa importante. - Disse Vítor, abrindo uma segunda carta. Bonita, “par avión”, selo elegante. Deve ser algo interessante. Ele sabia ler, mas não escrever. Uma frustração que o impedia de responder a algumas cartas. Gostaria de escrever um livro.

“Caro Senhor Fernandes,

O caso está correndo da maneira como esperávamos. Conversei com o juiz do segundo tribunal da cidade, o senhor Valério Costa, e parece que está tudo certo. Os jurados já têm o veredicto, como no combinado. Você será inocentado, sua esposa pegará 4 anos por molestar as crianças, e terá de lhe pagar uma indenização de dez mil reais. Foi difícil, pois este juiz é um homem, na maioria das vezes, honesto. Tive de lhe oferecer toda a indenização paga e mais cinco mil para poder sair em liberdade. Pode desistir dessa idéia de matar o vizinho. Seria algo muito estúpido pra se fazer. Nós já arranjamos um álibi importante. O outro vizinho, da casa 672. Você e ele foram assistir ao jogo “Flamengo contra Grêmio” no Maracanã na noite em que sua mulher e seus filhos foram violentados por você. Foi sorte, muita sorte, ter batido pouco nela, para não haver evidências. Se batesse nela da forma como bate em mim, ahhhh. Estaríamos perdidos, não é mesmo?
Bem, eu já tenho os ingressos, e algumas outras testemunhas, como alguns amigos que vocês encontraram durante o jogo. Foi preciso gastar mais dinheiro com isso, mas tenho certeza de que no final você sairá no lucro. Precisamos agora é discutir pessoalmente os outros detalhes desse nosso joguinho corrupto. Quanto vai ficar pra mim, quanto às outras testemunhas, e o que faremos depois disso. Precisamos decidir, afinal, já que, se quiser, estou disposta a passar a viver com você como amante, talvez por um ou dois anos, até que o blábláblá a respeito do caso abaixe e possamos nos casar. A conduta dos filhos é sua. Parabéns. São dois lindos pequenos sacos de pancadas. Aproveite-os bem. Bem, esta carta é rápida, porque estou sem tempo. Escrevo-a do aeroporto daqui do Rio. Estou indo praí, acertar os negócios finais. Um beijo ardente. (depois que ler isso, queime essa carta),

Sandra”

- É a...... como é mesmo? - Perguntou Maguila.
- Advogada. - Respondeu Vítor.
- Finalmente. Faz tempo desde aquela última carta. - Disse Carlinho. Esse era outro caso curioso, que eles não viam há muito tempo. Haviam lido apenas uma carta, quando o caso estava no começo. Não entendiam bem o esquema de funcionamento de um julgamento. Se bem se lembravam, deveria fazer um ano que eles receberam a primeira carta. Realmente não compreendiam o que estava em jogo de verdade, mas gostavam das frases picantes da advogada, que “estava muito melhor na outra carta”, como disse o Maguila. Sabiam apenas que o sujeito era safado, e batia nos filhos quando ia pro Rio de Janeiro. “Que nem o pai do Carlinho”, diziam eles.
- Posso abrir a próxima? - Perguntou Maguila.
- Quando vai ser esse tal julgamento? - Disse Carlinho.
- Ela disse na outra carta. Quando a gente voltar, podemos olhar. A moça vem pra cá. Essa carta é de... - parou, olhou bem a letra - ontem. Ela já deve estar aqui. Não sei bem a velocidade de um avião, mas deve ser rápido.
- Pois é... - Disse Carlinho, abrindo, ele mesmo, a próxima carta.

“ Pulsações

Na ordem.
Na hora.
Da vida.
De todos.
Na Safra.
De Mortes.
E de Poesias.
Nas pulsações de uma nova era.
Na hora.
Da vida.
Para todos.
Cortando o horizonte.
E matando a saudade.
De orações.
E pregações.
Para que,
Na vida,
De mortes,
Ainda vença,
A melhor.

Palavras

Se um dia, for eu uma palavra,
Serei a mais bela, e
A mais feia.
Para que, ouse eu fazer um bonito contrastre,
Possa eu inventar o novo verbo,
Fazendo então o per e o perante obterem novos significados.
E então, esse novo verbo trará da água um novo tom tônico,
Transformando a mais bela das palavras,
Na mais horrível das interjeições.

Coração de fogo

Depois de transformar a hora da estrela,
Na hora dos ruminantes,
Falta-nos ainda,
escrever a hora das ondas e das depressões,
Para que O Ciclo,
A cada dia mais circular,
Passe a formar dentro de si um coração.
De pedra.
E depois passar de pedra a magma,
para que depois; depois de fechar-se o círculo,
Possamos inventar um coração de fogo,
Já que,
O de água,
Naufragou.”

PS: Estes são mais três pequenos poemas que eu gostaria que os senhores avaliassem. Muito grato pela atenção dada.

Álvaro de Louvre”

Este era outro velho conhecido dos moleques. Um poeta fracassado. Já eram umas onze cartas com poemas dele que estavam guardadas debaixo da cama do Carlinho. “Um dia acho que vou deixar passar, né?”, dizia ele. Sentia um pouco de pena do pobre, que não tinha oportunidade de deixar os sujeitos da editora (pelo menos daquela editora) lerem seus poemas. Carlinho gostava muito deles. “São bonitos”, mas não os compreendia direito. Não eram, de fato, grande coisa.
- Que tal se deixássemos o cara levar essa? - Perguntou Vítor.
- Não. Eu gostei.
- Bem, eu achei ainda mais uma aqui. Parece interessante. É de mulher, e vai para
um homem. Letra à mão, e é bem gordinha. Deve ser “de história”. E é a última. As outras são de concurso. Hoje o dia foi bom.

“Orlando,

Estou mandando esta carta com antecedência, para que eu não corra risco de que ela não chegue em sua casa até o dia quatorze. Vou te contar um negócio: naquele dia da festa do Válter você foi ao banheiro, e por coincidência eu também fui na mesma hora. Os banheiros ficam um do lado do outro, e eu pude ouvir sua voz. Fiquei curiosa e resolvi ouvir o que você estava falando com aquela mulher, a... Glória, né? Eu ouvi tudo, seu filho da puta desgraçado. Ouvi você dizendo “hoje não, Glorinha, está muito complicado. A Laura está no meu pé”. E também ouvi você dizendo “que tal amanhã à noite? Posso ‘ficar trabalhando até mais tarde’. O que acha?”. Eu ouvi tudo, seu desgraçado. E você não pode disfarçar. E não adianta inventar nada porque eu te segui na noite seguinte. Segui e vi você se encontrar com aquela puta na porta do motel. Nosso namoro já está acabado, mas eu quero ter uma conversa com você. E se você não vier eu me mato. Essa carta deve estar chegando aí antes do dia quatorze (vê se arruma um telefone). Quero você aqui em casa exatamente às nove horas da noite no dia quatorze. Podemos conversar, mas se você não vier, eu me mato. EU ME MATO, está lendo isso, desgraçado? Por isso, nem pense em não vir. Podemos resolver nossas diferenças.

Laura”

Os três se entreolharam depois que Vítor terminou de ler a carta.
- Ei, vamos deixar a carta aí. - Maguila foi o primeiro a se expressar.
- Vamos deixar a mulher se matar? - Continuou.
- Não sei não... eu gostei dessa carta. Foda-se a mulher! Vamos guardar! O dia foi
cheio! - Respondeu Carlinho.
- Ahhhh... peraí, Carlinho. Vai deixar a moça morrer?
- Já apaguei um sujeito.
- Ahh...mas agora é diferente. Essa moça não fez nada contigo.
- Eu gostei dessa carta, Maguila. Porra!
- Podemos fazer uma coisa. - Disse Vítor, pela primeira vez.
Os dois olharam para ele, esperando uma resposta.
- Podemos ir lá assitir. - Respondeu.
- Assitir o quê? A mulher se matar?
- Não. A gente deixa a carta pro sujeito. Põe na caixa de correio dele. E depois, vamos pra casa da moça ver o que acontece.
- Que dia é hoje? - Perguntou Carlinho, desconfiado.
- Quatorze, quarta-feira.
- A mulher deixou endereço?
- Tem aqui nessa parte da carta. .... remetente. - Disse Vítor, abrindo um sorriso orgulhoso.
- Pode ser legal.
- Não temos nada pra fazer mesmo.... vamos lá comprar a cola pra fechar a carta de novo.

Tiveram de pagar a passagem de ônibus pra casa da moça. E o pior era que eram dois ônibus. Ela morava muito longe da rua São Gonçalo (A carta seria retransferida daquela caixa de correio para a casa do Orlando. Era uma estratégia dos carteiros). Mas isso não importava para eles. Era diversão que queriam. Eram três moleques, e três moleques espertos. Conseguiam dinheiro sem muito dificuldade. Vítor e Maguila às vezes faziam uns bicos, quando conseguiam, e Carlinho roubava. Nada disso incomodava nenhum deles. A idéia de assistir à discussão entre a mulher e o namorado lhes pareceu muito excitante. Ficaram, na verdade, eufóricos, felizes por terem conseguido isso na caixa de correio da São Gonçalo. A amada caixa de correio da São Gonçalo.
A casa da Laura ficava do outro lado da cidade, na saída para Minas Gerais. Enquanto aguardavam a chegada à rua onde ficava a morada da moça, discutiram a respeito do que o cara - Orlando - faria. Era uma viagem, uma aventura. Algo impressionante. Estavam definitivamente eufóricos. Vítor dizia que o dinheiro do ônibus (no total, quase sete reais!) valeria muito a pena, e que chegariam antes das nove. Mas a idéia mais interessante realmente para eles era a idéia de presenciar uma discussão, de poder VER e OLHAR para a mulher da carta, para o tal Orlando. De pode ENTRAR em contato com os “livros” e participar, como testemunha ocular, de uma de suas histórias. Vítor achava isso particularmente gratificante. Andaram muito até a primeira parada, e depois para a outra. O sol já havia se posto quando chegaram até a suposta casa da moça. Segundo Carlinho, que “sabia ver horas pelo sol” (mesmo sem sol), eram oito da noite. Olharam pela janela.
- Não estou vendo ninguém. - Disse Maguila.
- Ela não deve estar em casa, senão não tinha marcado exatamente às nove da noite. - Disse Vítor.
- O que isso tem a ver? - Perguntou Maguila, de novo.
- Deixa pra lá. Vamos esperar. Tem uma árvore ali. A essa hora, e gente vê ela chegar (ou ele) mas ela não vê a gente espiando.
- Foi sorte essa casa ter umas janelas grandes. - Disse Carlinho.
- Casa de pobre é assim. Janelas grandes, pro ladrão ver que não tem nada. A minha é assim. - Disse Vítor.
- Acha que se o cara não vier ela se mata? - Perguntou Carlinho.
- Sei lá. Isso é coisa de rico. Acho que não. Essa moça não tem dinheiro. Perdeu o namorado e tá fula. Não deve ter emprego, nem nada. Devia botar toda a esperança naquele merda do Orlando.
- Pois é. Olha só, a gente se acostumou tanto com essa visita que já tamo até chamando o cara pelo nome.- Disse Carlinho, acendendo um cigarro.
- Ei! Onde você arrumou isso, Carlinho? Tem que sobrar dinheiro pra gente voltar de ônibus!
- Achei. O isqueiro eu já tinha.

.....

A casa da moça era pequena. Dois quartos, uma cozinha minúscula e uma sala pequena. Ficava num conjunto de casa pequenas, todas separadas por um pequeno jardim sem muita grama. No jardim de Laura havia uma grande árvore, com tronco grosso o bastante pra esconder os três moleques de noite. O conjunto era mesmo de gente pobre. A maioria das casas sustentava famílias de oito, nove pessoas. Porém, perto deles, Laura vivia muito bem, porque morava sozinha. A casa era até bem mobiliada. Tinha televisão e telefone. Dava pra ver tudo das duas grandes janelas quadradas (uma estava com o vidro trincado) na frente da casa. Tinha também uma janela, na lateral da casa, que dava para um dos quartos, e outra, que dava para o banheiro. A casa não tinha telhado, e a tinta branca da parede estava toda descascada. Era uma daquelas casas antigas que já foram razoavelmente confortáveis, e que envelheceram, sendo agora a moradia de uma pobreza privilegiada da cidade, porque o resto (incluindo os três moleques), tinha que morar em barracos n’outro canto da cidade.
Laura chegou perto de oito e quarenta e cinco da noite, com três pacotes de supermercado nos braços. Era a compra do mês. Ela parou em frente à porta, olhou para os lados, à procura de alguma visita ou de um possível carro. Viu Maguila atrás da árvore, mas não deu atenção. Acontecia muito disso: desabrigados virem se hospedar debaixo da árvore do jardim. Não era Orlando. Isso é o que importava. Entrou em casa com a compra do mês, revistou a sala, a cozinha e o quarto. Nem sinal de Orlando. Ele vinha às nove em ponto mesmo. Tirou a roupa e foi tomar um banho. Os três moleques à espreita. Tentavam ver alguma coisa, mas a janela do banheiro era escura e ficava embaçada. Laura era uma moça bonita, bem morena, e magra. Bem magra. Mais que o normal. Porém, a sujeira e o suor nos cabelos não a deixavam muito atraente. Quando saiu do banho estava mais bonita. Colocou um vestido simples e passou batom vermelho. Andou um pouco pela casa e depois sentou-se no sofá da sala. Tirou da gaveta do criado-mudo ao lado do sofá um revólver, calibre vinte e dois, e começou a ler um livro, como se aguardasse alguma coisa.
- Será que o cara vai demorar? - Perguntou Maguila.
- Nem sei se ele vem. Acho que a moça tá impaciente. - Respondeu Vítor.
- Ela é bem gostosa. O cara deve ser doido de trair essa mulher. - Disse Carlinho.
- Não achei grande coisa. Não é difícil achar mulher melhor por aí. Mesmo mulher pobre. - Respondeu Vítor.
- Olha. Vem vindo um sujeito ali.
Era Orlando. Um homem magro, mirrado, baixo. Moreno também. Usava um bigode ralo. Olhava para todas as direções. Parecia nervoso. Vestia uma camisa xadrez azul com listras brancas, e uma calça jeans surrada. Uma boa roupa, para um trabalhador pobre. Antes da bater na porta, ajeitou a camisa, um pouco amassada, e olhou as horas no relógio, falsificado.
- Está aberta. - Ouviu.
Ele abriu a porta devagar. Parou em frente a ela, sem fechá-la. Os moleques saíram da árvore e foram para a beirada da casa, debaixo da janela. Dava pra ouvir tudo.
- Oi Laura. Tudo bem? Eu recebi a sua carta e....
- Que bom. - Cortou ela, sem tirar os olhos do livro.
- O que você quer falar comigo? Olha, eu sei que parece difícil de acreditar, mas...
- Eu já não disse que vi tudo? Onde você arrumou dinheiro pra pagar o motel, seu canalha? No tráfico? Eu soube que você andou metendo.
- Olha, Laurinha, eu ainda gosto de....
- Calaboca! Não posso acreditar que você tá dizendo isso! Foram 2 anos de namoro, sabia? - Disse ela, levantando a voz e também levantando-se da cadeira, deixando o livro no sofá. A arma estava embaixo da almofada.
- Olha, eu tava tratando de negócio naquele motel! A moça... a... - hesitou - a Glori... a Glória é minha informante. Eu não podia falar pra você! Eu tava mesmo metido no tráfico. E os caras são barra pesada. Se eu fizesse merda, você podia morrer como meu castigo. - Disse ele, hesitante.
- Acha que eu caio nessa, seu canalha? - Disse ela, indo em direção a ele e dando-lhe um tapa muito forte no rosto.
Orlando andou para trás, com a mão na cara, vermelha. Olhou para Laura nervoso. Conteve-se.
- Olha, Laura...
- EU QUERO ARRANCAR A CONFISSÃO DA SUA BOCA, DESGRAÇADO! - Disse ela, gritando e chorando como um leão feroz, em cima dele.
Os três moleques espiavam, observando tudo. O casal não estava olhando para a janela e era fácil acompanhar a discussão ao vivo. Maguila estava assustado. Carlinho ria, e Vítor estava eufórico, delirante. Parecia em êxtase.
- Estamos dentro do livro, Carlinho. - disse ele, olhando para o amigo.
- Estamos no livro! Olha só! Que maravilha! - Seus olhos estavam radiantes, e um sorriso aberto estagnava-se, fascinado, em sua boca. Carlinho, sádico, achava graça de tudo.
- Ele vai estuprar ela. - Disse ele em voz baixa.
....
- FALA, desgraçado! FALA! - Dizia ela, urrando de raiva.
- Você me traiu quando eu achava que tava apaixonada e que a gente ia se casar! - Continuou.
- LAURA! Eu não te traí! Eram negócios! NEGÓCIOS! - Disse ele também, levantando a voz.
- CÍNICO! - Gritou ela, correndo em direção ao sofá e pegando a arma.
- Ela pegou a arma! Vamos fazer alguma coisa! - Disse Maguila, nervoso.
- O livro já tá escrito, Maguila. Não podemos mudar isso. - Disse Vítor, vibrante.
- Hehe. Você tá viajando, Vitinho. Mas acho que a moça não tem peito pra furar o cara. - Disse Carlinho.
- Laurinha, por favor, eu não te traí....
POW! Cinco tiros cortaram a frase de Orlando no ar. Cinco tiros. Três no peito e dois na cabeça. Ele estava morto. A moça ficou paralisada, como em estado de choque. Largou a arma no chão. Ao cair, o revólver disparou mais uma vez, contra a parede. Os moleques pararam, também. Carlinho ficou paralisado. Maguila estava chorando. Vitinho parecia iluminado, sem deixar cair o sorriso, de onde agora escorria uma baba. O rosto da moça, seco de lágrimas, parecia triste. De súbito, ela começou a tremer, e a chorar mais. Começou a olhar desesperadamente para todos os lados. Viu os moleques, inertes e à espreita, e pôde proferir, com muito desespero, as únicas palavras de todo o diálogo que foram direcionadas a eles:
- SAI DAQUI!
E eles correram, como nunca fizeram antes, para longe. O mais longe possível. Não contaram nada a ninguém. Voltaram à rotina normal da pérola da São Gonçalo. Era disso que gostavam. Mas não com eles. Com os outros.

Ciro Inácio Marcondes

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